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terça-feira, 12 de abril de 2011

Cadê o contrato do rap nacional?

Cadê o contrato do rap nacional? 

Vendido! Traidor da raça! Traidor da favela! 
Esses são alguns dos adjetivos proferidos para os rappers que por um motivo ou outro não assinaram, ou simplesmente romperam o contrato do rap nacional. 
Aí você vai se perguntar, ou me perguntar: “Mas que merda de contrato do rap nacional é esse?” Pois é, justamente, eu também me pergunto isso, mas parece que ele realmente existe. Talvez esteja escondido em algum baú empoeirado por aí. 
O contrato do rap nacional seria um documento invisível que provavelmente fora criado no Brasil, por volta do final dos anos 80. Nele estava escrito que rappers oriundos de favelas e comunidades carentes não poderiam aparecer em hipótese alguma na TV (principalmente na aberta), salvo exceções, como premiações de música e etc. Mas ir ao Faustão, aparecer na Globo, independente do programa, sem chance! Participar de reality show então era causa para pena de morte; inclusive, um grande rapper nascido e criado em Itaquera teve sua morte decretada no rap nacional depois de aparecer numa tal de casa dos artistas. 
No contrato também estava escrito que ficaria proibida a participação de artistas de rap nacional gravando junto com artistas de outros meios musicais que não fossem igualmente ativistas e engajados. Se algum rapper cantasse com artista pop então, aí é que o bicho pegava de vez. E por falar em artista... No contrato também estava escrito que cantor de rap nacional não pode se considerar artista, pois artista de verdade é quem está na novela das oito, (pelo menos é assim que alguns querem que pensemos). 
Uma das cláusulas do contrato também diz que se o rapper nasceu na favela, o ideal seria que ele morresse ali, pois sair da favela depois de fazer sucesso não seria visto pelos fãs com bons olhos. 
Ah! Usar carro caro nem pensar, acessórios de preços exorbitantes também não serão permitidos pelo contrato, afinal de contas, rap é som de favela, e favela não tem e nem pode ter essas coisas (pelo menos é assim que alguns querem que pensemos [2]). 
E em uma das cláusulas finais estava escrito bem grande que cantor de rap nacional não poderia querer almejar o sucesso, a não ser o sucesso nas quebradas, nas favelas. Mas romper essa barreira da favela para o asfalto nem pensar. 
No contrato de que tanto falei até existiam, e ainda existem, algumas outras regras, mas as de grande relevância já foram citadas. 
Alguns grupos, e alguns mc’s até chegaram a assinar esse contrato, mas com o passar dos anos, os próprios criadores da obra, rasgaram e não respeitaram o documento que eles próprios haviam criado, (olha a contradição já se criando). Só que a merda já estava feita, o contrato já estava estampado em diversas paredes nas casas dos de mc’s que estavam começando no rap nacional, e alguns, se não a maioria, tomou as linhas do contrato invisível como regra, e regra é regra, ainda mais quando se está começando em alguma coisa e não se quer fazer feio. 
E aí o rap nacional se transformou no que se transformou. Membros de caras feias, membros contraditórios, membros brigando por ego, membros falando mal de outros membros, membros mudando de ideologia. Mas o que mais incomoda ao partido do rap hoje são os membros novos que querem mudar as regras daquele mesmo contrato que foi assinado por muitos, lá atrás. Esses membros novos querem fazer ressalvas em alguns incisos do contrato, mas a batalha é dura, o julgamento é árduo, vira e mexe entra uma liminar e tudo desanda. Os membros mais antigos e mais extremistas entram com protestos, alegando que o contrato não pode ser mudado, que o partido do rap é assim desde o seu início e tem que ficar assim para sempre. São muitos os juízes, incontáveis para ser mais exato. 
Só que esses membros mais extremistas se esquecem que as coisas mudaram, e se esquecem também que ninguém paga conta com aplausos e elogios, seria até bom se isso ocorresse, mas não é assim que funciona, não é assim que se joga o jogo. 
O fato é: se você está começando agora no rap nacional, se você quer trilhar uma carreira no movimento, você pode até se esquecer de colocar a camisa do Che Guevara, pode se esquecer também do boné aba reta do L.A, ou do N.Y, mas não pode se esquecer de forma alguma de assinar o contrato do rap nacional, pois sem ele, você não irá a lugar algum (pelo menos é assim que alguns querem que pensemos [3]). 
Só que alguns rappers romperam essas barreiras, alguns fizeram tudo ao contrário, mas eles não perderam suas raízes, e essa é a única cláusula que existe no contrato que é realmente válida, NÃO PERDER A RAIZ. Respeitando isso, o contrato é que se foda! 
Ah! Não esqueça, se você achar por aí uma cópia deste contrato, por favor, me mostre ou me mande, gostaria de tê-lo em mãos para conferir seus incisos minuciosamente, quem sabe talvez eu possa refazer este texto com mais algumas considerações. 

Confiram agora, um pouco da história de um Mc que desconsiderou totalmente as normas do contrato do rap nacional: 

Escalado para Coachella e Rock In Rio, Emicida leva rap subversivo a festival na Lapa e, em entrevista, fala de infância pobre, bullying e batalhas de MCs. 
Fonte: Globo.com (que ironia não!?) 




Um rapper paulistano num festival de rock independente? Um mano de sotaque carregado em meio a guitarras na Lapa? É, mas não se trata de um cara qualquer. Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, de 25 anos, é um dos maiores rappers brasileiros. E não apenas se apresenta no Grito Rock, quinta-feira, no Circo Voador, como está escalado para o Rock In Rio, em setembro, e para o Festival Coachella, um dos maiores eventos da música pop no mundo, em abril, na Califórnia.

Nesta entrevista, o mestre das rimas de improviso, famoso por esculachar rivais nas batalhas entre rappers (Emicida é mistura de "MC" com "homicida"), faz pouco caso das críticas que recebe via Twitter, fala sobre a parceria com a banda NX Zero e conta que foi vítima de bullying na escola, por ser negro e, na época, muito pobre.

- A professora ria quando me zoavam. Aquilo me enchia de ódio. Acho que a agressividade do meu jeito de cantar veio do bullying - diz o músico, que transformou em bordão o verso "A rua é nóis", do hit "Triunfo". - Ninguém faz rap sem ódio.

O GLOBO: Você cresceu numa favela da Zona Norte de São Paulo. Como foi o primeiro contato fora da comunidade?
EMICIDA: Eu tinha 6 anos quando meu pai morreu, e minha mãe virou faxineira. Saí da favela pela primeira vez nessa época, quando ela me levava para as casas nos bairros de rico. A primeira vez que vi um lápis de cor foi na casa de um arquiteto. E tive contato com livros também. Apartamento de rico é cheio de livros (risos).

E como você via os contrastes entre os bairros nobres e a sua comunidade?
EMICIDA: Eu brincava com as crianças ricas e voltava a para minha realidade. Morava numa casa de um cômodo com mais quatro pessoas. Aquilo me frustrava, mas transformei a frustração em vontade de crescer. Nessa época, o que me deixou mais revoltado foi a escola.

Por quê?
EMICIDA: Criança é um problema, cara. Os colegas me sacaneavam porque eu não tinha nem tênis, era sempre o mais pobre da sala. Pegavam no meu pé até porque meu pai tinha morrido. Durante um tempo, estudei num bairro de gente rica, perto da casa de uma patroa da minha mãe. Era o único negro da sala, e até a professora ria quando me zoavam. Aquilo me enchia de ódio, e virei um garoto violento, queria sair no braço com todo mundo. Num outro colégio, a barra era pesada. A polícia entrava na sala com cão farejador para revistar os alunos. Não tinha como estudar. Cheguei a sair da escola por meses e até pedi esmola na rua.

Isso tudo influenciou de algum jeito a sua música?
EMICIDA: Acho que a agressividade do meu jeito de cantar veio desse bullying contra mim. Aprendi que, se eu não me impuser, ninguém escuta. Quando você cresce com raiva, vira suicida ou terrorista. Sou um terrorista, mas da música. Ninguém faz rap sem ódio.

Quando a música entrou mesmo na sua vida?
EMICIDA: Eu andava com a galera do break e do grafite. Acordava às 7h para grafitar. Tinha 16 anos e era meio "vida loka". Mas o rap fazia parte desse universo, e comecei a frequentar as batalhas de MCs. Era só brincadeira de sacanear o outro. E eu me dava bem porque sempre tive facilidade para fazer rima.

Aí se vingava das vezes em que você foi sacaneado?
EMICIDA: Não sei, mas eu não perdoava ninguém. Nas batalhas, eu consegui me impor. Já fiz um cara chorar e até fui ameaçado de morte depois de esculachar demais um MC. Eu plantava um clima tenso. Perco o amigo mas não perco a rima. Não alivio nem cego. Em cima do palco, é tiroteio. Se você não sacar, o outro saca.

Mas agora você ficou famoso. Deu entrevista no "Altas horas", no "Programa do Jô", suas músicas tocam no rádio, vai cantar no Rock In Rio...
EMICIDA: Eu estourei, cara... (risos). Mas não largo as origens. Abracei a causa de dizer coisas relevantes. Eu canto sobre os esquecidos. Tem uma pá de gente invisível na rua. Eu vim dessa galera, estou aqui por causa deles. Meu exército é invisível.

No meio do rap nacional, dizem que entrar para o mainstream é traição. Você já foi chamado de traidor?
EMICIDA: Já. Principalmente pelo Twitter, porque a internet dá coragem para as pessoas. Mas esse povo aí não tem namorada e critica porque não tem o que fazer. Essa coisa de rapper não aparecer na TV surgiu com os Racionais MCs e funcionou bem para eles. Não preciso imitar.

Semana passada, o nome da música "Rua Augusta" foi parar nos trending topics do Twitter, quando o clipe estreou na MTV. Você se liga nessas coisas?
EMICIDA: Internet é ferramenta de trabalho, mas não dou tanta credibilidade para web. O trampo de verdade é na rua. Artista que só tem nome na internet e não representa na rua não vai a lugar nenhum.

As bases do seu som misturam vários ritmos. E você vai tocar no Grito do Rock. Já ouviu críticas de puristas do rap?
EMICIDA: Já fui a muitos festivais de rock pelo país. Coquetel Molotov, Calango, Jambolada... Quero derrubar essas barreiras ignorantes. Minha música tem influências de Lupicinio Rodrigues, jazz, samba, Nação Zumbi, Caetano Veloso... Para mim, tudo isso está conectado.

Gravar a música com o NX Zero ("Só rezo") foi ideia sua?
EMICIDA: Não. Foi um convite do produtor, o Rick Bonadio. Mas eu adoro NX Zero. Foi ótimo trabalhar com eles, e depois até apareceram umas adolescentes me seguindo no Twitter (risos). Já tinha quase gravado com a Cine também. Os caras dessa banda estão sempre nos shows de rap de São Paulo.

Você gosta de funk?
EMICIDA: Me amarro em Claudinho & Buchecha, Cidinho & Doca... Mas a vertente que mais faz sucesso, que só fala de sacanagem e crime, presta um desserviço. Ninguém quer ouvir o sistema dizer que funkeiro é bandido, mas aí vem vagabundo e canta que é isso mesmo. Esses caras podem ferrar uma geração inteira, cantando que ganhar salário é vergonha e enaltecendo promiscuidade. Outro dia fui à casa da minha mãe e vi minha prima de 14 anos com um filho. É uma bagunça.

Você tem uma filha de dois meses. Com tantos projetos e trabalhos, como você arruma tempo para a família?
EMICIDA: Outro dia tuitei que minha vida profissional anda assim como a minha vida pessoal desaba. Até porque eu me expresso muito melhor cantando do que conversando. Acho que a minha infância fez de mim um cara frio, principalmente num relacionamento. Espero que a minha filha me ajude a mudar isso, a ser um cara mais sensível. Tomara.


Considerações finais:
Eu gosto tanto de EMICIDA como gosto de Facção central, por exemplo, são estilos de rima, de levada e até de conteúdo, diferentes, mas ambos são rap nacional, ambos me servem de alguma coisa, seja em um momento de raiva, seja em um momento que eu esteja meio depressivo, seja em um momento que eu esteja mais reflexivo, mas a regra é uma só: ambos me servem de alguma coisa, se não eu nem escutaria. E é isso que alguns fãs do movimento precisam entender. A gente precisa parar de chamar um mc de vendido só porque ele fez mais sucesso do que outro. Cantor de rap nacional também é artista, também precisa ser reconhecido e pago de acordo com a sua arte, e se a sua arte é boa, o seu reconhecimento tem de ser grande; se a sua arte é boa, o valor pago por isso também tem de ser grande ora bolas. Afinal, que mal a nisso? É o reconhecimento da arte. Chega a dar orgulho alguém ouvir um rap e falar: “pô, que som legal, interessante, inteligente, diferente.” Dá orgulho em saber que eu escuto e amo o rap nacional (por mais complexo e estranho ele seja). E isso é muito bom, é gratificante.
Precisamos urgentemente rever alguns conceitos, precisamos almejar novos ares. Com certeza muita gente irá criticar o EMICIDA pelo fato dele participar de festivais fora do país, pelo fato de participar do Rock in Rio, muito por causa de inveja - é bom que se fale - mas muito também irão criticar simplesmente por criticar, pois no contrato do rap nacional não estava escrito que nenhum rapper poderia chegar tão longe.
É como o próprio EMICIDA diz: "Pobreza não é vergonha, mas também não pode ser orgulho."
Sem mais. 

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